A recente decisão da Seção de Dissídios Individuais (SDI) do Tribunal Superior do Trabalho (TST), que reafirmou a suficiência da simples declaração de hipossuficiência para a concessão da gratuidade de justiça, provocou intensos debates no meio jurídico e empresarial. Com uma votação apertada de 14 a dez, essa deliberação reacendeu preocupações sobre o equilíbrio entre a garantia de acesso à justiça e a sustentabilidade do sistema judiciário.
A justiça gratuita é um benefício que visa assegurar o acesso à justiça para pessoas que não possuem condições financeiras de arcar com os custos processuais. Esse direito está previsto no artigo 5º, inciso LXXIV, da Constituição Federal, que garante assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos. Os artigos 98 a 102 do Código de Processo Civil (CPC) regulamentam a concessão desse benefício, enquanto a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) , em seu artigo 790, aborda especificamente a gratuidade na Justiça do Trabalho.
Antes da Reforma Trabalhista de 2017, a simples declaração de pobreza, com base no artigo 1º da Lei nº 7.115/1993, era amplamente aceita para a concessão da gratuidade de justiça. Esse entendimento se baseava na presunção de boa-fé do declarante e no princípio de ampla acessibilidade à justiça. No entanto, as reformas subsequentes trouxeram novas exigências, sobretudo para aqueles com renda superior a 40% do teto do Regime Geral de Previdência Social (RGPS), impondo a necessidade de comprovação de insuficiência.
A recente decisão do TST, no entanto, resgata a prática pré-reforma ao considerar que uma simples declaração de hipossuficiência é suficiente para o deferimento do benefício. O impacto dessa abordagem é duplo: por um lado, fortalece a garantia de acesso à justiça para os trabalhadores; por outro, onera os empregadores, que passam a ter o ônus de comprovar a inexistência de necessidade por parte do empregado.
A decisão traz à tona uma questão crucial: até que ponto o sistema judiciário pode suportar o custo de uma concessão amplamente irrestrita da gratuidade de justiça? O argumento do voto vencido, liderado pelo relator Breno Medeiros, destaca que a aceitação irrestrita de tais declarações pode desequilibrar o sistema, sobrecarregando os cofres públicos e prejudicando aqueles que realmente necessitam do benefício. Além disso, a aplicação indiscriminada da justiça gratuita pode resultar em um aumento no número de processos, conforme apontado por estatísticas pós-reforma que indicam uma queda nas ações trabalhistas devido às exigências mais rígidas.
Estudiosos como Richard Posner, renomado teórico do Direito e Economia, argumentam que o custo de manter um sistema judicial acessível deve ser ponderado em termos de eficiência econômica. Ele destaca que, embora o acesso à justiça seja um direito fundamental, é essencial avaliar como a gratuidade indiscriminada pode impactar os recursos públicos e a eficiência do sistema. Owen Fiss, por sua vez, ressalta que o acesso à justiça deve ser equilibrado com a capacidade do Estado de sustentar seus serviços sem prejuízos ao coletivo. Já Mauro Cappelletti, em sua análise sobre o movimento de acesso à justiça, reforça que a efetividade das garantias jurídicas depende de um sistema que, ao mesmo tempo, assegure direitos e preserve a integridade financeira da administração judicial.
A decisão também ignora parcialmente os fundamentos da ADC 80, ainda em julgamento, que discute a necessidade de comprovação de insuficiência para a concessão do benefício, em consonância com o artigo 5º, LXXIV, da Constituição Federal. A indefinição da ADC 80 mantém um clima de incerteza sobre como o tema será definitivamente tratado pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Por outro lado, a ADI 5.766, julgada em 2018, declarou inconstitucionais dispositivos da CLT que limitavam o acesso à gratuidade de justiça ao vincular a perda da hipossuficiência a créditos obtidos em outros processos. Essa decisão destacou que as regras que dificultam o acesso à justiça devem ser compatíveis com a garantia constitucional de assistência jurídica integral e gratuita, sem extrapolar os limites impostos pela própria Constituição.
Para os empregadores, a decisão impõe um desafio considerável. O ônus da prova recai sobre eles para demonstrar que o trabalhador não faz jus à gratuidade, uma tarefa que, além de custosa, é muitas vezes impraticável. Ademais, essa responsabilidade pode gerar uma nova onda de litígios e prolongar os prazos processuais, impactando a eficiência da justiça.
Os efeitos da decisão do TST vão além das relações trabalhistas, tocando diretamente na administração da justiça e na alocação de recursos públicos. O debate sobre a gratuidade irrestrita de justiça continua a dividir opiniões, com defensores enfatizando o direito fundamental de acesso à justiça e críticos apontando os riscos de um sistema vulnerável a fraudes e abusos.
No entanto, é imperativo que o STF e os demais órgãos superiores assumam um papel de liderança para alinhar as interpretações legais de forma que o direito ao acesso à justiça não comprometa a sustentabilidade do sistema. A decisão da SDI do TST representa um esforço em prol da proteção aos trabalhadores, mas é urgente uma reflexão mais profunda sobre suas implicações práticas. Sem um equilíbrio cuidadoso entre acesso e sustentabilidade, o custo desse aparente almoço de graça será pago por toda a sociedade, ameaçando a própria eficiência e justiça do sistema.