Incoerência da Nova Lei de Improbidade Administrativa

Incoerência da Nova Lei de Improbidade Administrativa

No último dia 26 de outubro, foi promulgada a Lei 14.230/2021, que altera profundamente a Lei de Improbidade Administrativa, veiculada originalmente pela Lei nº 8.429/1992. Com efeito, dentre uma série de medidas, como a redução de prazos prescricionais, essa nova lei modifica o próprio conceito legal de improbidade administrativa, onde o que se persegue principalmente é a responsabilização patrimonial dos envolvidos em atos lesivos ao erário público.

Para tanto, a referida norma inclui o dolo real no núcleo dessa norma de responsabilidade (não o eventual, quando o agente assume o risco de o resultado ocorrer, o que ficará praticamente impossível de ser caracterizado, dada a conceituação extremamente restritiva de dolo trazido pela nova lei), como elemento indispensável da responsabilização do agente público ou de outros envolvidos equiparados, em atos lesivos à Administração.

E ainda esmiuça e detalha esse conceito, na nova redação do artigo 1º da Lei, em seus parágrafos 2º e 3º, ao especificar que considera-se dolo a vontade livre e consciente de alcançar o resultado ilícito (…), não bastando a voluntariedade do agente”.

Salta aos olhos, também, a inclusão do parágrafo 8º, ao novo artigo 1º da Lei, que dispõe não configurar improbidade a ação ou omissão decorrente de “divergência interpretativa da lei”, sendo tal “divergência” definida no mesmo dispositivo como aquela “baseada em jurisprudência, ainda que não pacificada”, e ainda “mesmo que não venha a ser posteriormente prevalecente nas decisões dos órgãos de controle ou dos tribunais do Poder Judiciário”.

Ou seja, o servidor público, cuja atividade é, segundo artigo 37, “caput”, da CF/88, plenamente vinculada à lei (e mais, não somente àquela emanada do Poder Legislativo, mas também a todas as regras, orientações e regulamentos infralegais emanados pelos órgãos aos quais está o mesmo vinculado, inclusive as ordens de serviço, instruções normativas, portarias e outros atos assinados por seus superiores hierárquicos) poderá se furtar de cumprir tais regramentos e de ser responsabilizado por seus atos simplesmente suscitando quaisquer decisões administrativas ou judiciais isoladas, mesmo que não corroboradas em definitivo por nenhum Tribunal do país, classificando-as como “jurisprudência” – ainda que ao arrepio de normas e orientações claras em sentido contrário de superiores hierárquicos.

Por outro lado, mesmo a possibilidade de responsabilização de acordo com essa norma, de pessoas jurídicas e físicas que não servidores públicos, envolvidas e beneficiados por atos de improbidade lesivos ao Erário Público, ficará restrita a esse conceito de dolo real especialíssimo, ainda que haja a prova do benefício a essas empresas e pessoas.

Com efeito, isso se deve em função da nova redação do artigo 3º da Lei de Improbidade, o qual exclui, sem qualquer ressalva ou pudor, a possibilidade anteriormente existente de responsabilização pelo ato lesivo em relação a quem “dele se beneficie sob qualquer forma direta ou indireta”. Sendo especificado, em vez disso, no parágrafo 1º, do mesmo artigo, agora alterado, que “os sócios, os cotistas, os diretores e os colaboradores de pessoa jurídica de direito privado não respondem pelo ato de improbidade que venha a ser imputado à pessoa jurídica, salvo se, comprovadamente, houver participação e benefícios diretos, caso em que responderão nos limites da sua participação”.

Ou seja, terá de ser comprovada, além da participação inquestionavelmente dolosa desses gestores, o auferimento de benefício direto por todas essas pessoas físicas, não bastando a demonstração de benefício às pessoas jurídicas das quais participam e gerem ou mesmo de terceiros relacionados a esses gestores. 

Em suma, muito poucas empresas, mesmo que beneficiadas direta ou indiretamente por ato lesivo à Administração, poderão ser responsabilizadas de acordo com a Lei de Improbidade Administrativa após a revisão aqui analisada. Ao patrimônio público somente restará, para a busca dessa eventual responsabilização, o rito e as dificuldades processuais de outros diplomas legais, notoriamente bem menos eficazes e com bem menos meios de persecução. E mesmo os dirigentes de envolvidos em atos de improbidade que dele se beneficiem somente poderão ter a responsabilização patrimonial perseguida com base nas alterações da lei, se comprovada, além da participação direta e dolosa inquestionável, que houve um benefício direto (não mais indireto) para si, pessoa física, mais ninguém, não importando a sua conexão com a ação investigada.

Pois bem, sem prejuízo da sempre desejada segurança jurídica e do prestígio à presunção constitucional de inocência, que certamente foram privilegiadas e enaltecidas, no seu grau máximo, nas alterações legislativas em exame, entendemos que cabe, quando menos, o comentário de uma aparente incoerência sistêmica jurídica dessas alterações legislativas com todo o sistema constitucional e legal de responsabilização de todos (e em especial do agente público, no desempenho de suas funções) por ações ou omissões que gerem danos a terceiros, inclusive ao Estado, e não somente por dolo real e especialíssimo, como o descrito na lei atual, mas também quando assumem o risco de suas condutas gerarem resultado danoso (dolo eventual) ou quando agem com culpa grave, em todas as suas modalidades (imperícia, imprudência e negligência).

Com efeito, o próprio § 4º, do art. 37 da Constituição Federal, que prevê constitucionalmente a responsabilização do agente público em caso de improbidade administrativa, e que teria sido somente regulamentado pela nova lei em comento, especifica, claramente, que “os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível”.

A parte final desse dispositivo constitucional, que prevê o ressarcimento pelo dano ”na forma e gradação previstas em lei” não pode, obviamente, anular, por via transversa, a real possibilidade de responsabilização do agente público prevista no artigo, com a “gradação” constitucional regulada pela lei pretensamente reguladora mediante a sua elevação matemática a zero, deixando, assim, a União Federal, a famosa “viúva”, sem qualquer tipo de reparação em face de comprovado dano, principalmente considerando o caput do mesmo artigo 37, que especifica, primeiramente, que a administração pública … obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência”.

É aqui que verificamos que uma norma legal, de razoabilidade, proporcionalidade e oportunidade questionáveis (segurança jurídica e presunção de inocência nunca foram negados, vindo sendo assegurados até então, de acordo com as circunstâncias de cada caso concreto, pela jurisprudência zelosa desses princípios, de forma bastante generosa), de fato passou a submeter e limitar o dispositivo constitucional que deveria somente regulamentar (não inovar e muito menos anular), e ainda em contrariedade ao caput do mesmo dispositivo constitucional (art. 37), que obriga a observância de princípios (legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência) e que inspiram o oposto da falta de responsabilização do agente público por seu atos culposos, e cuja gradação deveria ser maior justamente pela responsabilidade pública e não menor ou inexistente.

Há de se ressaltar que a nova lei é também inequivocamente incoerente com todo o nosso sistema normativo de responsabilização e de combate à corrupção, aperfeiçoado a partir da Lei Anticorrupção Brasileira (Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013), e cuja regulamentação foi inspirada na legislação americana com o memo objetivo (FCPA – Foreign Corrupt Practices Act), a qual, por sua vez, é pautada na teoria de combate e penalização a posturas de “cegueira deliberada”.

Tal teoria visa justamente responsabilizar sócios, dirigentes e responsáveis de empresas, não somente por atos de inconformidade (com a lei, com a ética, com seus regramentos internos) que possam se dizer e se comprovar como próprios, ou seja, saindo de suas mãos, e ainda assim, somente se diretamente para seus bolsos, como previu a nova lei examinada. Não, todo o sistema de Compliance internacional e nacional, inclusive pela imposição legal de programa de Compliance nas empresas, também repousa sobre o dogma de que não “basta ser legal, tem de se fazer a coisa certa, com ética e responsabilidade”.

Nessa toada, existe sim a responsabilidade e a responsabilização, não somente corporativa mas também legal, de donos e gestores de empresas, principalmente aquelas com relações com o Poder Público, por condutas que, embora não praticadas diretamente ou em relação às quais não obtiveram resultado direto para si, contribuíram diretamente ou indiretamente para estimular malfeitos ou mão desestimula-los,  ou seja, “deixando correr”  a inconformidade, com a imposição, por exemplo, de metas inalcançáveis a não ser que por meios espúrios, ou mediante posturas do tipo “consiga a qualquer custo”, “não quero saber o que precisará ser feito”, dentre outras típicas de uma organização que não possui controles de Compliance efetivos e onde os dirigentes preferem se fazer de cegos.

Trata-se do tão famoso jargão do “Tone at the Top”, tão repisado em treinamentos de Compliance que todos participamos, o qual foi simplesmente ignorado pela nova lei de improbidade administrativa brasileira, mas que certamente não será esquecido e nem ignorado pelas autoridades Europeia e Americana de controle de atos de inconformidade praticados no exterior, por empresas e empresários que realizam negócios também nessas regiões.

Com essa nova lei de improbidade administrativa brasileira, nos parece que a cegueira deliberada passa a ser facilmente escusada, no âmbito da lei de improbidade, pela suposta falta de dolo graduado, o que certamente não será benéfico para o Brasil (em relação aos danos que poderão ser sempre escusados com tal argumento, ficando a conta assim sempre para a “viúva”), nem tampouco para as empresas que lutam diariamente para implementar eficazmente seus controles de Compliance num país cuja cultura do “jeitinho” ou “do ninguém é responsável” parece resistir e persistir ao longo de décadas e agora conta com apoio oficial do Parlamento.

Concluindo, nos parece que a classe política brasileira sim, mais uma vez, nos fornece um péssimo Tone at the Top, o que certamente terá outros reflexos, com a atribuição de mais essa red flag ao Brasil.

Fonte: https://www.contabeis.com.br

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