Com a pandemia, muitos trabalhadores perderam seus empregos e precisaram se adaptar à nova realidade. Para muitas pessoas, trabalhar com aplicativos de comida foi a válvula de escape do desemprego durante a pandemia de covid-19. Diante disso, empresas do setor começam a se mobilizar em defesa de uma regulamentação da profissão que assegure direitos como aposentadoria e ganhos mínimos a esses trabalhadores, sem tirar deles a flexibilidade e a autonomia do modelo.
Em entrevista ao Estadão/Broadcast, executivos do iFood, uma das maiores companhias do segmento de entregas, defendem a criação de uma nova forma de contribuição à Previdência e não descartam a possibilidade de as plataformas colaborarem financeiramente para que esses trabalhadores tenham acesso a um grau melhor de proteção social.
No ano passado, manifestações de entregadores por todo o País escancararam os pedidos por melhores condições de trabalho, o que colocou as plataformas na berlinda.
A discussão sobre essa relação também já chegou à Justiça, com diferentes decisões sobre a existência ou não de vínculo empregatício entre os profissionais de aplicativo e as empresas.
O iFood é a primeira empresa a sair, individualmente, em defesa da regulamentação da profissão e com propostas, embora o debate esteja aquecido também entre as demais plataformas.
A discussão é complexa porque não se tratam apenas de entregadores, mas também de outros profissionais, como manicures, motoristas e até médicos que atuam por aplicativos. São diferentes modelos de negócios, com uma variedade de horas trabalhadas e rendimentos obtidos.
Entre executivos de outras plataformas, há a preocupação de não impor uma regulação que acabe onerando ou até inviabilizando pequenas empresas.
Hoje, os trabalhadores por aplicativo dependem das políticas de cada companhia para ter alguns benefícios, como ganhos mínimos e proteção contra acidentes ou doenças.
Para uma cobertura mais abrangente e direito à aposentadoria no futuro, precisam contribuir à Previdência como microempreendedor individual, modalidade subsidiada pelo governo que assegura benefícios de apenas um salário mínimo (R$ 1,1 mil), ou de forma autônoma, pagando 20% sobre o salário de contribuição (partindo de R$ 220 mensais).
Valor adicional
Na avaliação do iFood, as possibilidades atuais são insatisfatórias diante das peculiaridades do trabalho por aplicativo.
“O trabalhador de plataforma aufere a renda em vários aplicativos diferentes e não tem um sistema que consiga agregar isso em uma contribuição conforme o que ele ganha. A alternativa que ele tem hoje é o MEI, com uma taxa que é subsidiada mas dá a ele uma aposentadoria de salário mínimo. Não faz sentido”, afirma o diretor de Políticas Públicas do iFood, João Sabino.
“A discussão é como usar a tecnologia para criar essa espécie de carteira virtual, em que ele faz uma contribuição proporcional ao que ele ganha, mas também vai ter uma aposentadoria proporcional ao que ele arrecada”, acrescenta o executivo.
Segundo dados do iFood, metade dos trabalhadores da plataforma (51,3%) ficam mais de 25 horas semanais ligados no app e ganham R$ 25,23 por hora trabalhada em média (cinco vezes o salário mínimo/hora). O argumento do diretor é que a nova regulamentação daria chance de esse profissional contribuir para uma aposentadoria maior no futuro.
Em relação aos ganhos mínimos, Sabino afirma que o piso nacional atual por hora trabalhada (R$ 5/hora) é o “básico” e “jamais poderia ser alguma coisa abaixo disso”. No entanto, ele vai além e defende a discussão de um valor adicional mínimo de acordo com a modalidade do trabalho por plataforma, para incorporar os custos envolvidos na operação. Isso porque um trabalhador CLT recebe o salário mínimo como remuneração apenas por sua mão de obra, enquanto o profissional de aplicativo precisa descontar outros custos, como combustível ou outros insumos.
“Precisamos entender que trabalhadores de plataforma digital têm as suas semelhanças, mas também suas diferenças, e elas precisam ser discutidas, caixinha a caixinha. Então ter pisos diferentes acho que seria um bom vetor de discussão”, afirma o diretor.
Segundo apurou a reportagem, o governo tem mantido discussões internas sobre a possibilidade de criar uma modalidade de “microempreendedor digital” para abarcar os trabalhadores de aplicativo, mas os rumos dependem também de como ficará a reorganização administrativa do governo, isto é, se haverá a recriação do Ministério do Emprego e Previdência.
Ajustes
A Associação Brasileira Online to Offline (ABO2O), que representa mais de 150 aplicativos, afirma que “qualquer debate sobre a relação entre profissionais independentes e aplicativos deve considerar essa multiplicidade de atores envolvidos no modelo econômico de intermediação de serviços”.
A entidade afirma ter contratado estudos técnicos sobre a economia digital e tem discutido o tema com as empresas associadas.
“Vale frisar que num contexto de pandemia e aumento do desemprego, essas plataformas digitais se tornaram a principal porta de entrada de brasileiros e brasileiras na economia, assegurando renda e sustento para milhões de pessoas. Outro ponto essencial a ser considerado é a competitividade do setor. No Brasil, onde esse ecossistema ainda é incipiente, qualquer avanço regulatório deve levar em consideração a importância de não restringir o acesso ao mercado apenas para algumas empresas”, afirma.
O economista José Pastore, especialista em trabalho e que tem dado consultoria à Fecomércio-SP nas discussões com as plataformas, afirma que o MEI é “muito indicado” para abrigar os trabalhadores de aplicativo, mas “precisa de alguns ajustes”, inclusive para que eles possam contribuir mais para a Previdência. Ele chama a atenção para o fato de que hoje não há sequer proteção à mulher gestante que atue por meio dessas plataformas.
Segundo Pastore, não necessariamente a plataforma precisaria contribuir para a proteção social do trabalhador, mas eventualmente isso pode ser oferecido como uma vantagem para “captar” o profissional. “Tem vários caminhos para explorar”, diz. Ele cita o exemplo da Alemanha, em que há uma série de profissões autônomas (como atores) cuja contribuição à Previdência é requerida para o exercício da atividade. Neste caso, há contribuição do trabalhador, da empresa que usa o serviço e do governo para uma conta individual.
A contribuição pode ser reduzida em períodos sem trabalho e compensada quando o profissional está em atividade, para evitar redução do benefício.
Fonte: com informações do Estado de S.Paulo