Em muitos municípios, é comum que secretarias municipais solicitem a realização de empenhos de forma acumulada para atender aquisições realizadas por meio de Ata de Registro de Preços (ARP). No entanto, quando se trata da aquisição de bens de consumo, como gêneros alimentícios, materiais de higiene e limpeza, medicamentos e materiais de expediente, essa prática pode gerar riscos legais e contábeis.
Neste artigo, apresentamos um caso prático vivenciado em um município onde a contabilidade foi provocada por um pedido do setor requisitante, que pretendia gerar um único empenho e realizar liquidações fracionadas ao longo do exercício. A análise técnica resultou em uma nota orientativa, que agora compartilhamos em formato de artigo com o objetivo de esclarecer o tema para outros profissionais da área pública.
O caso prático
Em determinado município, a rotina de execução de despesas por Ata de Registro de Preços segue o seguinte fluxo: as secretarias municipais emitem uma requisição interna, que é encaminhada ao setor de compras, responsável por gerar o documento denominado Pedido de Empenho. Esse pedido, por sua vez, é entregue à contabilidade, que realiza a emissão do empenho correspondente.
No caso concreto, uma secretaria encaminhou uma única requisição para aquisição de gêneros alimentícios. O setor de compras, com base nessa requisição, elaborou um único pedido de empenho, e a contabilidade emitiu o empenho integral no valor total previsto.
Contudo, posteriormente, a secretaria requisitante manifestou a intenção de emitir notas fiscais em valores menores e fracionados, conforme fossem surgindo as necessidades de entrega da mercadoria. Isso resultaria na utilização de um único empenho para múltiplas liquidações e documentos fiscais, prática essa que compromete a regularidade da despesa.
Conceitos fundamentais
O Manual de Contabilidade Aplicada ao Setor Público (MCASP – 9ª edição, Parte IV, Seção 4.4.2.1) classifica os empenhos da seguinte forma:
Ordinário: utilizado para despesas de valor fixo e previamente determinado, com pagamento de uma só vez;
Estimativo: utilizado para despesas cujo valor não se pode determinar antecipadamente, como energia elétrica, água, combustíveis, telefonia, etc.;
Global: utilizado para despesas contratuais de valor conhecido, mas com pagamentos parcelados.
A Lei nº 4.320/1964, em seu artigo 58, define o empenho como o ato formal que cria para o Estado a obrigação de pagamento. Já o artigo 60, parágrafo único, inciso II, determina que o empenho por estimativa só deve ser utilizado quando não se puder determinar previamente o montante da despesa.
Nas aquisições por ARP de bens de consumo, cujas entregas são feitas sob demanda e com valores previamente estimados por item, o tipo de empenho tecnicamente correto é o empenho ordinário – emitido a cada requisição, acompanhando cada nota fiscal e liquidação correspondente.
Jurisprudência relacionada
A prática de fracionamento indevido da despesa pública, bem como a emissão de um único empenho para posterior liquidação fracionada, já foi objeto de análise pelos Tribunais de Contas, que consideram tais condutas como contrárias à boa gestão orçamentária e potencialmente lesivas ao erário.
TCU – Acórdão nº 3.412/2013 – Plenário:
O Tribunal de Contas da União entendeu que aquisições de produtos de mesma natureza devem ser planejadas em conjunto, e que a realização de despesas fracionadas com o objetivo de evitar a modalidade de licitação correspondente configura irregularidade administrativa. O julgamento reforça que a falta de planejamento pode implicar fracionamento indevido de despesa, contrariando os princípios da economicidade e da legalidade.
TCE-MG – Representação nº 932363:
O Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais enfatizou que despesas de natureza similar realizadas em um mesmo exercício financeiro devem ser consolidadas para fins de licitação, salvo justificativa técnica e legal. O uso de requisições parciais ou liquidações múltiplas sem a correspondente previsão de empenho adequado compromete a legalidade da despesa e sujeita os responsáveis às penalidades cabíveis.
Esses precedentes reforçam que a execução orçamentária deve seguir os princípios do planejamento, unidade de execução, transparência e controle, sendo vedado o fracionamento artificial de despesas com o intuito de flexibilizar etapas legais do processo de contratação ou mascarar a realidade financeira da execução.
Riscos do fracionamento indevido
Emitir um único empenho e realizar várias liquidações com base em entregas fracionadas configura execução orçamentária indevida, pois:
- Imobiliza recursos orçamentários de forma antecipada e ineficiente;
- Dificulta o controle e a rastreabilidade da despesa pública;
- Pode gerar glosa da despesa e ressalvas em auditorias dos Tribunais de Contas;
- Compromete os princípios da transparência, legalidade e economicidade.
Além disso, conforme prevê a Lei Complementar nº 101/2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal) e a Lei nº 14.230/2021 (que atualiza a Lei de Improbidade Administrativa), os gestores públicos – prefeitos, secretários e ordenadores de despesa – respondem solidariamente por omissões e irregularidades que resultem em prejuízo ao erário, mesmo quando a conduta for dolosa por omissão (Art. 10, I da Lei 14.230/2021).
Recomendações práticas
Com base na análise técnica realizada, foram estabelecidas as seguintes recomendações:
O setor de compras deve recusar pedidos de empenhos que proponham múltiplas liquidações vinculadas a um mesmo empenho ordinário;
As secretarias devem emitir requisições separadas conforme a previsão de entrega e consumo dos bens;
A contabilidade deve orientar e, se necessário, devolver pedidos irregulares, registrando formalmente a recomendação por nota técnica;
É essencial manter o registro e documentação de todo o fluxo, para resguardar a legalidade dos atos administrativos.
Conclusão
A correta classificação e utilização dos tipos de empenho é uma prática indispensável para a boa execução orçamentária. O uso do empenho ordinário em ARPs de bens de consumo não apenas atende à legislação vigente, mas assegura um ambiente de controle, legalidade e responsabilidade.
Ao contador público cabe exercer seu papel técnico e orientador, protegendo a administração pública de riscos operacionais e jurídicos, e contribuindo para uma gestão eficiente, transparente e comprometida com o interesse público.
Bibliografia
BRASIL. Lei nº 4.320, de 17 de março de 1964.
BRASIL. Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000 (LRF).
BRASIL. Lei nº 14.230, de 25 de outubro de 2021.
MCASP – 9ª edição – STN – Parte IV – Execução Orçamentária.
TCU – Acórdão nº 3.412/2013 – Plenário.
TCE-MG – Representação nº 932363.
Por: Tiago Lima da Silva Favareto é contador público municipal, especialista em contabilidade aplicada ao setor público, com ampla atuação em finanças públicas, execução orçamentária e controle interno. Atua na orientação técnica de secretarias municipais, assessoramento contábil e emissão de notas explicativas e pareceres sobre execução da despesa pública. É autor de artigos voltados à prática contábil e à responsabilidade fiscal no ambiente público municipal.