A negociação coletiva, consagrada no artigo 7º, inciso XXVI, da Constituição Federal, não apenas representa um dos pilares do Direito do Trabalho, mas também constitui uma ferramenta dinâmica para moldar as relações laborais à realidade de cada categoria profissional. O recente debate em torno da possibilidade de modificar a natureza jurídica de determinadas verbas trabalhistas – inclusive para lhes atribuir caráter indenizatório – por meio de instrumento coletivo tem despertado reações antagônicas. De um lado, há quem tema a “flexibilização excessiva” de direitos. De outro, cresce o coro daqueles que enxergam nesse movimento uma evolução indispensável para a eficiência das negociações setoriais, desde que preservados os direitos fundamentais e indisponíveis.
A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento do ARE 1121633 (Tema 1046 da Repercussão Geral) deixou clara a legitimidade de as partes negociarem, via acordos e convenções coletivas, limites ou mesmo afastamentos de determinados direitos trabalhistas. O STF pontuou ser imperiosa a observância das garantias básicas do trabalhador, mas também salientou que não se pode subestimar a autonomia negocial coletiva assegurada pela Constituição. Essa autonomia possibilita adaptar os termos das relações de trabalho às peculiaridades de cada setor econômico, garantindo maior poder de barganha aos sindicatos e permitindo que se construam soluções específicas e mais justas no contexto concreto.
A controvérsia gira em torno da ideia de que pagamentos já tradicionalmente classificados como “verbais salariais” – caso das comissões, gratificações ou prêmios – poderiam, por meio de norma coletiva, ser transfigurados em parcelas indenizatórias, alheias à base de cálculo de outros direitos trabalhistas. Os críticos temem que essa manobra reduza a remuneração efetiva e prejudique a subsistência do empregado, violando o patamar mínimo de proteção laboral. No entanto, a experiência e a decisão do STF indicam que essa preocupação pode se mostrar exagerada quando a norma coletiva é fruto de uma negociação autêntica, lastreada em contrapartidas que atendam aos anseios da categoria profissional.
Foi exatamente esse o entendimento adotado pelo Tribunal Superior do Trabalho (TST) ao julgar o processo TST-RR-59-62.2021.5.23.0106. Nessa ação, validou-se a cláusula de um instrumento coletivo que alterou a natureza jurídica das comissões pagas aos motoristas de ônibus, convertendo-as em verba indenizatória. O TST, apoiado nos parâmetros do STF, reconheceu a legitimidade desse ajuste negociado, pois se identificou que, no fundo, a parcela não se destinava a remunerar vendas ou produtividade, mas sim a compensar uma nova atribuição assumida pelos motoristas – a de exercer atividades antes desempenhadas por cobradores.
A leitura apressada do caso poderia levar à interpretação de que se estaria suprimindo um direito essencial: afinal, comissões, nos termos do artigo 457, §1º, da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) , integram o salário. Todavia, na realidade, o instrumento coletivo apenas corrigiu a nomenclatura equivocada de uma verba que, na prática, servia de contrapartida às tarefas adicionais dos motoristas. Não há, nesse cenário, prejuízo real ao trabalhador, mas sim um “ajuste terminológico” para enquadrar a verba no seu devido lugar jurídico. Vale sublinhar que o próprio STF, ao julgar o Tema 1046, faz ressalvas quanto à inegociabilidade de direitos absolutamente indisponíveis, a exemplo do salário mínimo, da segurança e higiene do trabalho e de disposições contra discriminação (artigo 611-B da CLT). Porém, ao se afastar das verbas efetivamente salariais, a negociação coletiva, nesse caso, não subtraiu qualquer garantia essencial.
Por que, então, insistir na possibilidade de alterar a natureza jurídica das verbas por meio de negociação coletiva? Em primeiro lugar, porque a realidade do trabalho é muito mais complexa do que a rigidez das leis pode comportar. As relações laborais são marcadas por novas tecnologias, multifunções e arranjos produtivos dinâmicos. Se a legislação não confere a necessária flexibilidade, a negociação coletiva surge como um canal legítimo para equilibrar interesses de empregadores e empregados.
Em segundo lugar, fortalecer a autonomia negocial coletiva significa valorizar o papel dos sindicatos, que, em tese, conhecem profundamente as necessidades e condições dos trabalhadores que representam. Quando de boa-fé, as soluções alcançadas na mesa de negociação tendem a ser mais eficazes do que medidas impostas unilateralmente ou engessadas em interpretações legais excessivamente restritivas.
Ademais, a argumentação de que a alteração da natureza jurídica de pagamentos seria invariavelmente prejudicial ao empregado ignora a possibilidade de contrapartidas vantajosas, como benefícios adicionais, estabilidade provisória, planos de carreira ou outras formas de compensação alinhadas aos anseios da categoria. O STF, ao consagrar o conceito de “adequação setorial negociada”, deixa espaço aberto para que as partes busquem caminhos diferentes, sem que isso signifique aniquilar os direitos trabalhistas fundamentais.
É inegável que a possibilidade de mudar a natureza das verbas trabalhistas levanta questionamentos, sobretudo acerca da efetiva representatividade dos sindicatos e da existência – ou não – de verdadeiro equilíbrio de forças na mesa de negociação. Entretanto, afastar em bloco a prerrogativa de negociação sob a justificativa de salvaguardar direitos mínimos equivale a negar a própria essência da autonomia coletiva, além de desprezar o papel fiscalizador dos órgãos competentes, da Justiça do Trabalho e das próprias entidades sindicais quando atuam em prol dos trabalhadores.
O ponto crucial, portanto, não reside na vedação total de alterações por norma coletiva, mas sim na verificação concreta de abuso ou fraude. Se há provas de que o sindicato foi conivente com a redução de direitos indispensáveis, sem oferecer qualquer compensação ou vantagem correlata, evidentemente a cláusula poderá ser anulada pelo Poder Judiciário, que não tem se furtado a cumprir sua missão constitucional de proteger os direitos trabalhistas essenciais. Por outro lado, quando a negociação se mostra legítima, equilibrada e voltada à adaptação das condições de trabalho às peculiaridades do setor, não há motivo jurídico para invalidar.
A decisão do TST no processo TST-RR-59-62.2021.5.23.0106, aliada ao posicionamento do STF no Tema 1046, revela o quanto a negociação coletiva pode – e deve – avançar na construção de normas capazes de refletir a realidade de cada categoria. Diante de um cenário de constantes mudanças no mundo do trabalho, agarrar-se a modelos fixos e inflexíveis soa anacrônico e, por vezes, prejudicial ao próprio trabalhador. Será que a rigidez legal deve prevalecer a todo custo, mesmo quando a categoria, democraticamente organizada, opta por soluções mais adequadas às suas demandas atuais?
A resposta, à luz das decisões do STF e do TST, parece clara: a possibilidade de mudar a natureza jurídica de determinadas parcelas trabalhistas não só é válida, como representa passo coerente e corajoso em direção à modernização das relações de trabalho. Desde que respeitados os direitos fundamentais indisponíveis, a liberdade de negociar não constitui uma afronta à proteção laboral, mas, ao contrário, reforça o papel dos sindicatos e confere maior aderência das normas coletivas à realidade vivenciada nos diversos setores econômicos.
Sob o viés previdenciário, é importante ter cautela ao alterar a natureza de determinada verba remuneratória para indenizatória. Nesse aspecto, vale citar, por analogia, o entendimento da Receita Federal quanto à alteração legislativa, promovida pela Reforma Trabalhista, que atribuiu natureza indenizatória ao pagamento do período suprimido do intervalo intrajornada (art. 71, §4º da CLT).
Sobre esse tema, a Receita Federal já se manifestou pela incidência das contribuições previdenciárias, sob o entendimento de que o valor, a qualquer título, pago para retribuir o trabalho, sofre a incidência de contribuições previdenciárias, mesmo após a Reforma Trabalhista ter destacado a natureza indenizatória do pagamento relativo ao período suprimido.
Portanto, partindo do entendimento acima, é possível concluir que, caso seja celebrado acordo coletivo para alterar a natureza remuneratória de determinada verba, cujo pagamento é efetuado como retribuição ao trabalho, a Receita Federal constituirá auto de infração para a cobrança de eventuais contribuições previdenciárias não recolhidas pelo contribuinte, com o acréscimo de multa de ofício e juros, sob a justificativa de que a alteração da natureza seria insuficiente para afastar a incidência tributária.
Em última análise, o debate é oportuno e saudável. Provoca a reflexão sobre até que ponto a tutela estatal deve suprimir o poder de autocomposição que a Constituição confere às categorias profissionais e econômicas. Ao que tudo indica, permitir essa negociação – inclusive quanto à natureza das verbas trabalhistas – é mais do que uma escolha legislativa ou jurisprudencial: é uma afirmação da própria essência democrática de promover soluções negociadas para questões que a lei geral dificilmente abarcaria em toda a sua complexidade.
Com a coautoria de Luiz Felipe de Alencar Melo Miradouro, sócio da área previdenciária do Bichara Advogados