Quando o Ministério da Saúde decidiu incluir doenças infecciosas graves, como hepatite B, C, HIV e tuberculose, na Lista de Doenças Relacionadas ao Trabalho (LDRT), parecia mais um gesto nobre de proteção ao trabalhador. Essa mudança, oficializada pela Portaria GM/MS nº 5.674, de 1º de novembro de 2024, representa um marco significativo na legislação trabalhista e sanitária brasileira.
No entanto, ao olharmos mais de perto, percebemos que ela tem o potencial de transformar empresas em miniaturas do Sistema Único de Saúde – mas sem orçamento público ou suporte governamental. Afinal, de quem é a culpa se alguém adoece? Pelo que parece, agora é da empresa, mesmo que o contágio tenha ocorrido no bar ou no transporte público.
A portaria, publicada no Diário Oficial da União em 5 de novembro de 2024, alterou a Portaria de Consolidação GM/MS nº 5, de 2017, e ampliou consideravelmente a abrangência das doenças ocupacionais.
Pela nova LDRT, condições como HIV e tuberculose, antes associadas a fatores externos e não exclusivamente ao trabalho, agora são reconhecidas como enfermidades ocupacionais. A lógica é clara: os agentes e fatores de risco que podem ser encontrados no ambiente laboral – físicos, químicos, biológicos – estão listados para embasar ações de vigilância e promoção da saúde. Porém, a execução prática disso cria uma série de distorções e desafios.
Historicamente, as doenças ocupacionais eram associadas a exposições claras e mensuráveis, como ruído, agentes químicos e poeira. O nexo causal era, ao menos, algo rastreável. Mas agora, entramos no território do improvável, onde até mesmo doenças cuja origem é incerta, como HIV, podem ser enquadradas como responsabilidade empresarial.
Imagine a situação: um trabalhador contrai o vírus, e a empresa, culpada até prova em contrário, precisa demonstrar que a contaminação ocorreu fora do ambiente laboral. Como exatamente alguém faz isso? O ônus da prova virou uma fantasia que nem Sherlock Holmes seria capaz de solucionar.
A mudança não afeta apenas setores como saúde ou emergência, que lidam diariamente com riscos infecciosos. Agora, qualquer empresa – seja uma padaria, um escritório de contabilidade ou uma fábrica de tecidos – está no alvo dessa lógica ampliada.
O conceito de “doença ocupacional” foi esticado até o limite, incluindo cenários onde a ligação com o ambiente de trabalho é tão vaga quanto uma previsão astrológica. Isso significa que empresas podem ser responsabilizadas por condições cuja gênese se dá fora de seu controle. Um cliente espirra no caixa? Um colega tosse na sala de reuniões? De repente, a tuberculose ou a hepatite entra no escopo do empregador.
E as implicações práticas? A prevenção vira o mantra obrigatório. Vacinação em massa, exames periódicos, controle sanitário e um acompanhamento médico próximo agora fazem parte do pacote.
É quase como se a empresa precisasse se transformar em uma clínica de saúde ocupacional. Isso, claro, gera custos monumentais, que recaem mais pesadamente sobre pequenas e médias empresas. Imagine o dono de um restaurante de bairro tendo que implementar um programa de vacinação obrigatória para os garçons ou uma loja de telefonia exigindo exames mensais de seus atendentes. Para muitos, o impacto será insustentável, e a conta certamente será repassada aos consumidores – ou, pior, à falência do negócio.
A portaria destaca, ainda, que a lista tem como objetivo orientar ações de vigilância em saúde e não substituir as instâncias científicas no estabelecimento de nexos causais. Isso parece ser uma tentativa de acalmar os ânimos, mas o efeito prático ainda é colocar as empresas em uma posição de responsabilidade desproporcional. A partir dessa interpretação, não basta cumprir as normas de segurança do trabalho; será preciso ir além, monitorando constantemente um número crescente de variáveis.
Há ainda o delicado problema da privacidade. Exigir que os empregados apresentem informações sobre sua saúde, como testes de HIV ou vacinação, cria um campo minado jurídico. É a privacidade do trabalhador contra a sobrevivência financeira da empresa. E, caso o funcionário se recuse, qual será a solução? A demissão vira discriminatória? Uma avalanche de processos trabalhistas já se desenha no horizonte.
Ironias não faltam nesse cenário. Em tese, a atualização da LDRT deveria proteger o trabalhador, mas pode criar um efeito contrário. Empresas, com receio de futuros passivos trabalhistas, podem adotar uma postura defensiva e evitar contratar pessoas com condições de saúde pré-existentes ou que pertençam a grupos de risco.
Ao invés de inclusão, teremos discriminação indireta. Trabalhadores que deveriam se sentir mais protegidos podem acabar sendo marginalizados. No limite, cria-se um mercado de trabalho onde o medo de processos supera a confiança entre empregadores e empregados.
A inclusão dessas doenças na lista é ousada, mas é preciso questionar se estamos preparados para lidar com as consequências práticas. Delegar às empresas responsabilidades que transcendem o ambiente de trabalho é deslocar o papel delas de geradoras de emprego para algo próximo a provedores de saúde universal.
O sistema público deveria assumir sua parte nesse processo, garantindo suporte que vá além de repassar ônus às organizações privadas. Sem isso, o resultado será um mercado de trabalho fragmentado, caro e hostil – para trabalhadores e empregadores.
No fim, a decisão parece mais um exercício de boas intenções mal planejadas do que uma medida realmente efetiva. Se o objetivo era proteger a saúde dos trabalhadores, não seria mais eficaz fortalecer políticas públicas e dividir responsabilidades de forma equilibrada? Afinal, entre uma utopia regulatória e a realidade de negócios à beira do colapso, precisamos de soluções que não tratem empresas como o novo SUS, mas como parceiros que precisam de condições reais para continuar gerando emprego e renda.