Relações simbióticas no processo orçamentário
A Constituição de 1988 atribuiu ao processo orçamentário maior democratização às políticas públicas conferindo uma participação mais ampla do Poder Legislativo no estabelecimento da programação econômico-financeira do Estado, estabelecendo que todo o processo alocativo de recursos está sob a égide da lei, e nada se faz em termos de despesa pública sem que exista uma autorização legislativa.
Para cumprir o seu objetivo, satisfazer as necessidades coletivas o Estado necessita estabelecer um processo contínuo e simultâneo que seja capaz de proporcionar transparência e racionalidade no processo de obtenção e aplicação de recursos. O ciclo orçamentário compreende um conjunto de quatro fases que se estende por um período de pelo menos três anos, uma vez que a elaboração e aprovação devem ser realizadas no exercício financeiro anterior ao que se refere à execução orçamentária, que será avaliada no exercício seguinte, alternando competências em cada fase entre os Poderes Executivo e Legislativo.
A interação entre duas espécies que vivem juntas é definida pela ecologia como simbiose, o que a biologia a define como a relação de longo prazo entre duas espécies em que uma, ou ambas, se beneficiam da união. Estas interações podem ser classificadas em três tipos: mutualismo, comensalismo e parasitismo.
No mutualismo a relação entre indivíduos de espécies diferentes gera benefícios para todos, como por exemplo no caso dos animais polinizadores que ao posar em uma flor além de obter o alimento para si, contribui para a reprodução das plantas. Em matéria orçamentária esse seria anseio da sociedade e os Poderes envolvidos, resultando a prática orçamentária em benefícios a todos os agentes envolvidos e ao mesmo tempo para a sociedade por meio da satisfação dos interesses coletivos.
No Comensalismo a interação acontece normalmente entre um anfitrião, e um comensal menor, em que o primeiro não sofre alterações, enquanto o segundo é beneficiado, como por exemplo a hiena que fica à espreita da caça do leão, para se alimentar dos restos, é o que ocorre na relação dos gastos para manutenção da máquina pública e os investimentos tão essenciais ao País, cada vez mais reduzidos em função ao aumento significativo dos gastos obrigatórios.
Agora se apenas uma das partes se favorece, o enlace descamba para o parasitismo, interação entre dois seres vivos em que um se beneficia (parasita) e o outro (o hospedeiro) é prejudicado, como por exemplo Pulgas e carrapatos se beneficiam ao se alimentarem do sangue de seus hospedeiros, causando coceira, dor e doenças. Talvez seja o caso da sociedade em relação aos gestores no que concerne a alocação dos recursos públicos sem que de fato seja contemplado boas práticas de gestão.
Apresentação da LDO 2022 antes da aprovação da LOA 2021
O prazo para que o Poder Executivo encaminhe o projeto de Lei de diretrizes orçamentárias – LDO para o Congresso Nacional expirou no dia 15/4/2021. A LDO orienta a elaboração do orçamento, estabelecendo metas Fiscais, diretrizes, estrutura, organização e execução dos orçamentos, regras para transferências de recursos, projeções atuariais, gastos tributários, riscos fiscais, entre outras ações.
O projeto apresentado pelo Ministério da Economia estabeleceu como premissa o aprimoramento das regras de execução do orçamento antes da sua aprovação, já admitindo que possivelmente que a Lei Orçamentária Anual – LOA de 2022 não será aprovada no prazo 15/12/2021. Foram inseridos dispositivos para novas autorizações considerando as dificuldades para execução de determinadas despesas no início de 2021. Assim de aprovadas no próximo exercício o governo poderá executar gastos com conservação e recuperação de rodovias além de despesas de capital até 1/24 do valor do Projeto de Lei Orçamentária Anual.
Outra situação que merece destaque é que a Emenda do Teto de gastos estabelece que as despesas somente podem crescer proporcionalmente a inflação do período anterior, contudo ainda não sabemos qual será a despesa de 2021, tendo em vista que até o presente momento a Lei orçamentária anual de 2021 não foi publicada, demonstrando a eterna disputa política por recursos travada entre os poderes, federações, partidos políticos entre outros.
Arena Orçamentária: A disputa pelos recursos escassos
O Orçamento materializa significativa fragmentação de interesses político-eleitorais individuais do chefe do Poder executivo, sua equipe ministerial, deputados, senadores, interesses que se concentram no atendimento de bases eleitorais e grupos de interesse mediante expansão da despesa. A competição estabelecida entre os interessados na disputa de recursos escassos secundariza o debate quanto às políticas públicas que possam vir a sofrer efeitos deletérios com o contingenciamento ou remanejamento de recursos em disputa.
A disputa orçamentária entre os poderes motivou diversas alterações recentes nas regras orçamentárias. Se antes as emendas parlamentares só eram executadas em troca de apoio em temas polêmicos e impopulares apresentados ao congresso para aprovação, tal como foi feito durante reformas trabalhistas e previdenciárias, resolve-se esta questão por meio da inserção de regra que vincula parcialmente a execução de tais emendas. Se a expansão do gasto público representa um risco a gestão fiscal, aumentando o endividamento, cria-se uma nova regra estabelecendo um limite máximo, um teto para os gastos.
A gestão orçamentária estabelece um consumo excessivo de tempo e energia no processo de análise e aprovação, onde é buscada a alocação de recursos para determinadas regiões e projetos, com a finalidade de vincular ao projeto a marca de sua autoria e gozar dos benefícios políticos que poderão existir, principalmente nos anos finais de mandato. Na verdade, tarefa de extrema importância por vezes é preterida, O acompanhamento da execução orçamentária, o qual têm-se revelado insuficiente impacta diretamente na qualidade do gasto público. Informações da Controladoria Geral da União indicam que em 2019 existiam 10.916 obras paralisadas, equivalentes a R$ 165,8 bilhões. O Auxílio emergencial o qual contribui em muito para avaliações positivas da sociedade em relação ao Poderes Legislativo e Executivo, não foi executado a contento, o que de acordo com o Tribunal de contas da União gerou pagamentos indevidos de R$ 55 bilhões. Falhas na execução orçamentária geram gasto público de qualidade reduzida. De acordo com o Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID o desperdício de recursos públicos no Brasil em 2019 representou 4% do PIB Diante deste contexto não se pode negar que este fato prejudica a sociedade. A ineficiência na execução dos gastos públicos consome recursos que poderiam ser aplicados no atendimento dos anseios da sociedade.
A Infalibilidade dos responsáveis
Agentes públicos políticos em geral têm dificuldades para admitir seus erros, podendo tal situação ser classificada como um dogma, tal como aquele estabelecido pelo Concilio Vaticano I (1.870) ao proclamar a infalibidade papal, onde para os católicos as deliberações do papa em matéria de fé ou moral são divinamente reveladas, portanto livre de erros. Normalmente tergiversam sobre temas publicamente questionados, alterando discursos de maneira injustificada e eventualmente admitem equívocos, contudo sempre atribuindo o erro a uma motivação externa.
Quando questionamos os motivos das dificuldades econômicas, atribui-se a culpa às crises internacionais, pandemia ou outros fatores. Sustentam que somos uma das maiores economias do mundo, embora nosso PIB tenha saído da 6ª colocação para a 12ª na última década, não levando em conta que somos o 8º pior país em desigualdade de renda, atrás apenas de nações africanas e ocupamos a 84ª posição no ranking do índice de desenvolvimento humano, indicadores não compatíveis com a nossa elevada carga tributária, aproximadamente 35% do PIB.
Em matéria orçamentária quando se questionam os erros grotescos que culminaram com um buraco no orçamento de 2021 de R$ 32 bilhões provenientes da redução de despesas obrigatórias, verificamos uma troca de acusações entre os responsáveis pela elaboração e aprovação da proposta. Na visão do Parlamento o orçamento subestimou gastos obrigatórios devido ao erro na proposta encaminhada pelo Poder Executivo, uma vez que a mensagem de retificação foi encaminhada após a elaboração do parecer do relator, contudo para o Ministério da Economia as informações já eram conhecidas dos parlamentares que não analisaram o orçamento de acordo com os novos indicadores econômicos, contudo para acomodar o volume inflado de emendas parlamentares não tiveram outra alternativa senão, a redução de despesas obrigatórias. Frise-se que a culpa é sempre do outro, mas quem paga a conta é a sociedade. Como defender a existência de uma relação de mutualismo nesta relação entre gestores e sociedade?
Tal situação obriga os gestores envolvidos a buscarem soluções, por vezes pouco ortodoxas, para restabelecer o equilíbrio entre os Poderes. Criam-se normas e ato contínuo, criam-se novas normas para autorizar a burla dos dispositivos legais recém criados. Diante da irresponsabilidade orçamentária agora o governo, para não desagradar o Congresso, tenta buscar alternativas para não romper o teto de gastos e não vetar a proposta orçamentária coo recomendado pela área técnica, evitando cometer crime de responsabilidade, ao sancionar uma lei marcada por ilegalidade.
Entre as ações “fura teto”, lembrando que a PEC emergencial já agiu também neste sentido, já se cogitou retirar o bolsa família deste cálculo, assim como as despesas relacionadas à Pandemia. Já se cogitou sancionar a LOA e abrir créditos extraordinários ao longo do ano, contudo não se sabe se tal medida seria capaz de evitar o denominado “apagão das canetas”, situação em que os técnicos com receio de autorizar gastos e depois serem responsabilizados perante órgãos de controle, paralisam a máquina pública. Já até se cogitou no agendamento de uma viagem internacional para que o presidente e o vice não tivessem que sancionar a LOA, transferindo a competência para a sanção o Presidente da Câmara, ou o do Senado a fazê-lo, eximindo o Poder Executivo.
Mutualismo na relação orçamentária
Não restam dúvidas sobre a necessidade de melhoraria na organização do Estado e isso passa antes pelo aperfeiçoamento do processo de planejamento e execução orçamentária, principalmente nos serviços essenciais como segurança, saúde e educação, onde o descontentamento da população é grande e inversamente proporcional a sua necessidade. De acordo com pesquisas realizadas pelo IBGE, 70 % da população depende exclusivamente do Sistema Único de Saúde e 80 % do total de alunos do ensino fundamental e médio frequentam escolas públicas por exemplo.
O orçamento público brasileiro é concebido de forma incremental. Propostas de alocação de recursos para exercícios futuros normalmente tomam como base os projetos que já estão em execução, contudo nem sempre as políticas públicas são traduzidas de maneira adequada no orçamento, o que contribui para a erosão simbiótica, que a rigor, não representa uma relação de mutualismo entre a formulação das politicas que geram benefícios políticos aos responsáveis e os ganhos obtidos pela sociedade.
A dissociação entre planejamento orçamentário e políticas públicas por vezes ocasiona a descontinuidade de ações públicas, justificadas pelas dificuldades de ordem orçamentária, tal como o longo período de suspensão do programa de auxílio emergencial.
Conclusão
Para que seja possível estabelecer uma relação simbiótica mutualista, onde todos os evolvidos se beneficiam é necessário aperfeiçoar a cultura de planejamento, conferindo uma verdadeira política de Estado, deixando de considerar uma perspectiva mais imediatista, restringindo a cultura de valorização do improviso normativo, reduzindo a constitucionalização de novas regras de controle, a cada situação de dificuldade política ou econômica, em que se busque atenuar os rigores das normas orçamentárias. É ainda necessário que o cidadão, quer seja de forma individual, ou por meio de associações, observatórios, ou até mesmo através dos Órgãos de Controle, se envolvam de maneira efetiva no processo de elaboração, execução e controle dos recursos públicos, pois assim os formuladores de políticas públicas só usufruirão dos benefícios desta relação se de fato toda a sociedade for beneficiada.