O estágio como instrumento de inclusão

O estágio como instrumento de inclusão

No dia 3 de novembro foi proferida sentença nos autos da Ação Civil Pública nº 0000790-37.2020.5.10.0015, ajuizada pelo Defensor Público Dr. Jovino Bento Júnior, em que se argumenta que o Programa de Trainees voltado somente para profissionais negros, instituído pelo Magazine Luiza (Magalu), seria inconstitucional.

Sob a equivocada ótica da Defensoria Pública da União (DPU), o citado programa discriminaria os demais grupos de trabalhadores ao destinar-se, exclusivamente, aos profissionais negros, bem como teria como verdadeiro intuito alavancar a imagem da empresa e aumentar seu lucro e, não, efetivamente, promover a cultura inclusiva no mercado de trabalho. 

Em razão do dano supostamente sofrido pelos trabalhadores das demais etnias não englobadas pelo Programa de Trainee, a Defensoria Pública pretende, além do cumprimento de obrigações de fazer e não fazer, que o Magalu seja condenado em indenização por danos morais coletivos no absurdo montante de R$ 10 milhões.

A CRIOLA, associação civil que defende os direitos das minorias e ciente que é do quadro racial e social existente no Brasil, representada pelo Escritório Bichara, por sua vez, requereu o seu ingresso nos autos como amicus curiae, o que foi deferido, na medida em que não poderia deixar de contribuir para a defesa da acertada ação inclusiva, em favor da população negra, promovida pelo Magalu.

Atento aos fatos e às normas que regulam a matéria, inclusive internacionais, o Juízo da 15ª Vara do Trabalho da 10ª Região, em decisão proferida pela Dra. Laura Ramos Morais, acabou por julgar totalmente improcedente o feito, sendo interessante transcrever parte dos fundamentos da sentença:

“(…)

Portanto, é incontroverso que o Brasil prevê a possibilidade de adoção das ações afirmativas, tanto pelo poder público, quanto pela iniciativa privada, com o propósito de promover condições equitativas para a igualdade de oportunidades, inclusão e progresso para pessoas ou grupos sujeitos ao racismo, à discriminação racial e formas correlatas de intolerância. Sendo certo, também, que tais medidas ou políticas não serão consideradas discriminatórias.

No caso dos autos, a documentação juntada com a petição inicial, em especial o documento de id. 48a9c80 – Pág. 5/10, demonstram que a medida instituída pela ré encontra guarida no ordenamento jurídico pátrio e internacional, estando de acordo com a Constituição Federal, a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial, a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância, a Lei 12.288/2010, assim como com o entendimento jurisprudencial do STF

Pelo que se extrai do referido documento, o objetivo da ré, ao propor o Programa de Trainee exclusivo para candidatos negros (autodeclarados negros ou pardos), teve por escopo garantir a participação de jovens negros nos cargos de liderança da empresa. De acordo com o referido documento, a demandada, muito embora seja composta por 53% de pessoas negras, somente possui 16% de líderes negros. A seleção proposta, portanto, de acordo com tal informação, teria por finalidade a correção dessa desigualdade, o que é totalmente válido perante o que propõe a Lei 12.288/2010 e demais normas que tratam da matéria.

Dessa premissa, resulta que o processo seletivo impugnado pela presente ação civil pública não configura qualquer tipo de discriminação na seleção de empregados. Ao contrário, demonstra iniciativa de inclusão social e promoção da igualdade de oportunidades decorrentes da responsabilidade social do empregador, nos termos do art. 5º, XXIII, e art. 170, III, da Constituição Federal, e está devidamente autorizado pelo art. 39 da Lei 12.288/2010.

Isto posto, reconhecendo a validade do “Programa de Trainee 2021” lançado pela ré, julgo o pedido de pagamento improcedente de indenização por danos morais, seguindo a mesma sorte os pedidos de tutela inibitória formulados nos autos.

(…)

O tema debatido nos autos da referida Ação Civil Pública é muito caro à sociedade nacional e merece atenção especial, principalmente porque a Autora da ação trata-se da Defensoria Pública da União. 

Ademais, fato é que ainda hoje, mais de 130 anos depois da abolição da escravatura no Brasil, há incontestável e profunda desigualdade racial na sociedade brasileira, a qual reflete em indicadores sociais como: educação, renda, saúde, expectativa de vida, mortalidade infantil e escancaram as significativas diferenças de apropriação da riqueza gerada, com impacto direto nas condições de vida e trabalho da população negra, a qual, inclusive, representa a parcela majoritária da população nacional.

Dados sobre desemprego obtidos em pesquisa realizada pelo Departamento Intersindical de Estudos Econômicos e Sociais (DIEESE) e pela Fundação CEAC sobre a presença da população negra na População Economicamente Ativa (PEA) em alguns dos principais centros urbanos do país demonstram que o índice de desemprego é inegavelmente maior entre negros e pardos do que entre brancos.

Como é notório, há um cenário de abismo de oportunidades profissionais entre etnias, especialmente considerando os privilégios experimentados pela população branca quando se pensa em direitos à educação e saúde, vantagens que separam as etnias desde a infância e contribuem para que as vagas de trabalho não sejam preenchidas por pessoas negras, sobretudo em cargos hierarquicamente mais altos ou em atividades especializadas que demandam formação técnica e profissional.

Além dos elevados níveis de desemprego, a desigualdade social é latente entre brancos e negros, sendo certo que um dos objetivos do Estado Democrático de Direito é justamente o compromisso com a redução da disparidade e a promoção da igualdade material.

Neste cenário, certo é que uma das melhores formas para combatermos a desigualdade entre raças é a implementação de medidas inclusivas, como o sistema de cotas ou processos seletivos igual ao realizado pelo Magalu e reputado como inconstitucional pela Defensoria Pública.

O que defende a CRIOLA, é que ao contrário do entendimento da Defensoria, para que se possa promover a inserção e manutenção de profissionais negros no mercado de trabalho, é preciso que sejam incentivadas ações positivas de inclusão exatamente nos moldes do Programa de Trainees da Magalu, bem como parcerias com instituições como a CRIOLA, que defendam os interesses das minorias.

A Constituição Federal de 1988 (CF/88) adotou expressamente uma opção política de isonomia diferenciada, conforme se observa no art. 37, VII, art. 227, art. 7º, XXX, entre outros.

Na construção dessa sociedade inclusiva, justa e igualitária que é direito de todos a ser concretizado (art. 3º da CF/88), dividem-se os papéis cabendo ao Estado e à Sociedade a elaboração e implementação de políticas públicas compensatórias e eficazes, constituindo as bases do princípio da solidariedade que vincula a todos os atores sociais e não apenas ao Estado.

Neste sentido, temos que a discriminação positiva não pode ser vista com preconceito. O seu fim é justamente dar oportunidade para que indivíduos em situação de desvantagem sejam menos desfavorecidos. Assim, se privilegia o princípio da equidade entre os cidadãos em busca se de promover a garantia da igualdade de oportunidades.

A discriminação positiva é importante, necessária e urgente, pois promove a correta e ampla interpretação do instituto da igualdade jurídica, ao suplantar a mera igualdade formal prevista no caput do art. 5º da CF/88, afinando direitos e garantias.

A lei busca, e isso não se discute, a inclusão e a igualdade de oportunidades entre cidadãos de diferentes etnias. Portanto, não pode ser utilizada contra o seu próprio propósito, de modo que sua interpretação atinja o absurdo. Por isso a importância da discussão travada na Ação Civil Pública aqui comentada, pois é preciso defendermos a importante distinção entre discriminação positiva e discriminação negativa, de forma a realmente garantirmos o direito à igualdade.

Aliás, existe previsão específica de ação afirmativa no nosso ordenamento jurídico, o que foi bem observado pela sentença proferida e antes transcrita. Com efeito, o artigo 4º da Lei nº 12.288, de 20 de julho de 2010 – Estatuto da Igualdade Racial, assim dispõe: “a participação da população negra, em condição de igualdade de oportunidade, na vida econômica, social, política e cultural do País será promovida, prioritariamente, por meio de: I- inclusão nas políticas públicas de desenvolvimento econômico e social e II- adoção de medidas, programas e políticas de ação afirmativa, dentre outras”.

Portanto, em conclusão, temos que acertada a decisão proferida nos a autos da Ação Civil Pública nº 0000790-37.2020.5.10.0015 e importante que não só a comunidade jurídica esteja atenta ao tema e ao desenrolar do caso, mas a sociedade em geral para que, ao final, resguardemos o verdadeiro princípio de igualdade constitucionalmente garantido e com isso possamos promover uma sociedade inclusiva, plural e igualitária. 

Fonte: https://www.contabeis.com.br

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