Quanto mais se quer avançar, mais é necessário dominar o básico. Nós poderíamos conversar aqui sobre Método de Equivalência Patrimonial do CPC 18, reconhecimento de receitas pelo CPC 47 ou a contabilização de uma combinação de negócios à luz do CPC 15. O problema é que, sem base, tudo isso seria uma sequência de memorizações. E eu quero que você entenda, não que você decore as coisas.
O básico não é o simples. É o que dá base. É o fundamental.
Por isso, antes de entrarmos em assuntos mais divertidos na contabilidade, eu faço questão de fazer você presente para aquilo que considero essencial. Os temas que irão construir uma fundação sólida. E sabe como é… somente se edifica algo duradouro sobre uma fundação sólida.
Eu sei que você nunca teve clientes desse tipo, mas deve ter um amigo que já se deparou com essa situação: o cliente aparece com uma série de operações que o extrato indica, mas não há notas fiscais.
Contabiliza ou não essa operação?
Para nos ajudar a responder essa questão, vamos primeiro pensar na contabilidade em si. O objetivo dela é representar a realidade da forma mais fidedigna possível, certo? Quando fechamos as demonstrações contábeis, atestamos que aquela é a realidade patrimonial da empresa. Ou seja, pela lógica, mesmo sem apelar para nenhuma norma, eu posso concluir que, se algo aconteceu, deveria ser contabilizado.
O seu amigo, porém, pode se sentir inseguro de contabilizar uma despesa de compra sem nota, por exemplo. “Quem sou eu, na fila do pão, para lançar algo sem nota só pela minha lógica?”. Então eu vou dar uma forcinha. Quer dizer, eu não, as Normas Brasileiras de Contabilidade. Olha só que interessante:
“5. A escrituração contábil deve ser executada:
(…)
e) com base em documentos de origem externa ou interna ou, na sua falta, em elementos que comprovem ou evidenciem fatos contábeis.”
Fala aí, não é lindo isso? Esse trecho faz parte da ITG 2000, uma norma contábil publicada pelo Conselho Federal de Contabilidade que trata da escrituração contábil. Ela é uma interpretação técnica (daí vem o ITG: interpretação técnica geral) extremamente ampla, que deve ser adotada por todas as entidades, independente do seu porte ou da sua natureza.
Basicamente, o que esse item está dizendo é que se você tem documento externo (notas fiscais e recibos), isso ampara a escrituração. Se você tem documentos internos (relatórios e controles), isso também ampara a escrituração. E aí vem o grande lance.
Mesmo que você não tenha documentos (na sua falta), se há elementos que comprovem ou evidenciem os fatos contábeis, você tem amparo para contabilizar sim!
Posso ter despesa sem nota?
Pode ter despesa, receita e tudo mais. Para a Contabilidade, o fato de não ter cumprido uma obrigação acessória fiscal (emissão de documento fiscal) não lhe exime da correta escrituração.
Aliás, ter uma Contabilidade bem feita, de verdade, que demonstre a realidade, é o primeiro passo para que esse monte de coisas que você faz seja útil para o empresário. Se o Balanço Patrimonial e a Demonstração de Resultado estão distorcidos pelas operações “sem nota”, não tem como isso ser usado pra nada mesmo… vira lixo.
Agora, olha só que interessante. O fato de você contabilizar corretamente inclusive evita que se criem outros problemas para o empresário e até mesmo para o Contador. Quer dizer, você não. O seu amigo, afinal eu sei que você não tem nenhum cliente assim, certo?
Pense comigo.
O cliente compra sem nota. E o infeliz, pra piorar, pagou pelo banco. O cacoete no mercado contábil é não lançar isso. Logo, o saldo bancário não bate. O Contador, para baixar esse saldo, recorre ao mundo mágico do caixa fictício:
D – Caixa (AC) C – Banco (AC) Histórico: Suprimento de caixa.
Está feita uma das cagadas mais utilizadas para desclassificar a contabilidade em perícias contábeis ou processos administrativos tributários.
Além disso, ao fazer isso, deixou de contabilizar uma despesa. Consequentemente o lucro se tornou, ficticiamente, mais alto. Por mais mentirosa que seja essa Demonstração de Resultado, o cliente irá enxergar que há lucro. E o contador provavelmente irá na onda.
Lucro falso distribuído de mentirinha. Provavelmente usando o caixa fictício. Gerando um saldo de dinheiro em espécie de faz-de-conta na pessoa física.
Distribuição de lucro na DIRF. Pagamento em espécie (acima de R$ 50.000,00) no COAF. Recebimento em espécie (de R$ 30.000,00 ou mais) na DME. Fora todo o resto do cruzamento de informações.
E o Contador assinando tudo isso, inclusive as demonstrações contábeis, alegando que aquilo é a realidade patrimonial da empresa.
Sério mesmo que o seu amigo não vê problema nenhum nisso?
É incrível, mas tudo isso se resolve contabilizando certo. O único problema que persiste é a ausência de nota fiscal, que é um problema tributário que o cliente assumiu. Mas você prefere ter um problema ou vários? Prefere ter um problema do cliente ou vários dele e que você passou a assumir a responsabilidade junto?
Na prática…
Deixa eu te contar um segredo. Sabe aquele papo de que “na prática, a teoria é outra?”. Pois é, essa é a maior mentira que já te contaram na Contabilidade. A verdade é que a prática é só a teoria sendo aplicada.
O cliente é do Lucro Real? Problema nenhum: contabilize a despesa e faça a adição no LALUR/LACS. Nenhum dano tributário nesse sentido.
A operação sem nota é uma receita? Problema nenhum: oriente o cliente de que, mesmo sem nota, o correto é fazer a tributação. Afinal, não cumprir obrigação acessória não lhe exime de cumprir obrigação principal.
Ele “não quer” tributar? Oriente, inclusive documentando isso e colhendo assinatura da ciência. Ele que acenda uma vela e reze por cinco anos (quase seis) para Santa Prescrição. Se, lá na frente, resolver dizer que o Contador não avisou, você estará muito bem amparado para se defender.
Quer dizer… você não, o seu amigo, né?
Eu sei que esse artigo ficou um pouco mais comprido do que o de costume, mas é um tema importante e precisava ser explorado do início ao fim. A partir disso, há conversas importantes, como até onde vai a responsabilidade do Contador. Mas nós estamos só começando. Logo mais tem artigo novo para continuarmos o papo.